VANGUARDA PAULISTANA - TEATRO LIRA PAULISTANA

Vanguarda Paulistana: O Teatro Lira Paulistana e a Revolta Contra o Marasmo Musical dos Anos 1970

Música

A Vanguarda Paulistana, movimento cultural que floresceu em São Paulo entre o final dos anos 1970 e meados dos 1980, emergiu como um grito de inconformismo contra o cenário musical brasileiro da época, dominado por fórmulas comerciais e pela estagnação criativa.  

Em um período marcado pelo ocaso da ditadura militar e pela efervescência da abertura política, artistas como Arrigo Barnabé, Itamar Assumpção, e bandas como Rumo, Premeditando o Breque e Língua de Trapo encontraram no Teatro Lira Paulistana, um pequeno porão no bairro de Pinheiros, o palco ideal para suas experimentações sonoras. Misturando rock, samba, reggae, música erudita e humor irreverente, esses músicos desafiaram convenções, criando uma cena independente que reverbera até hoje.  

O Lira Paulistana não foi apenas um espaço físico, mas um símbolo de resistência cultural, onde a música brasileira ganhou novas cores e vozes em um momento de transição histórica. 

Um Porão para a Revolução Musical 

O Teatro Lira Paulistana nasceu em 25 de outubro de 1979, em um porão modesto na Rua Teodoro Sampaio, 1091, próximo à Praça Benedito Calixto, em Pinheiros.  

Fundado por Wilson Souto Jr., conhecido como Gordo, Waldir de Oliveira e Chico Pardal, o espaço surgiu com a proposta de ser mais do que uma casa de shows: era um centro cultural alternativo, aberto a manifestações artísticas diversas, de teatro a exposições, mas com a música como protagonista.  

Inspirado pelo livro homônimo de Mário de Andrade, o Lira Paulistana se propôs a ser um espaço de experimentação, onde artistas rejeitados pelas grandes gravadoras podiam apresentar trabalhos inovadores. Em um contexto de censura e conservadorismo, o teatro se tornou um refúgio para a cena independente, atraindo universitários, artistas e “descolados” que buscavam algo além do pop rock mainstream e da MPB tradicional.  

Com capacidade para cerca de 150 pessoas, o Lira era um espaço pequeno, mas sua energia criativa era descomunal, catalisando o que viria a ser conhecido como Vanguarda Paulistana. 

Arrigo Barnabé e Wilson Souto Jr.: A Chama da Vanguarda 

Arrigo Barnabé, apesar de ser oriundo do Paraná, encontrou no Lira Paulistana o espaço perfeito para sua música ousada e teatral. Sua relação com Wilson Souto Jr., um dos fundadores do teatro, foi crucial para o movimento.  

Souto, um engenheiro apaixonado por música, reconheceu o potencial de Barnabé após ouvi-lo no Festival da Feira da Vila Madalena, em 1979. A parceria resultou no apoio logístico e financeiro para a gravação de Clara Crocodilo (1980), álbum seminal que misturava música erudita contemporânea, rock e narrativas inspiradas em histórias em quadrinhos.  

Barnabé, com sua abordagem atonal e letras provocadoras, trouxe ao Lira uma estética radical que desafiava as estruturas tradicionais da música popular. Sua banda, Sabor de Veneno, e apresentações viscerais no teatro atraíram um público fiel, consolidando o Lira como um polo de inovação. Souto, por sua vez, tornou-se uma figura central na produção cultural do espaço, conectando artistas e viabilizando projetos que as gravadoras ignoravam.  

A influência de Barnabé extrapolou o palco, inspirando outros músicos a experimentarem sem medo de rótulos. 

VANGUARDA LIRA PAULISTANA - PREMEDITANDO O BREQUE
Premeditando o Breque – o Premê

Rumo, Premeditando o Breque e Língua de Trapo: As Vozes da Experimentação 

As bandas Rumo, Premeditando o Breque e Língua de Trapo foram pilares da Vanguarda Paulistana, cada uma trazendo uma identidade única ao movimento, mas todas unidas pelo espírito irreverente e pela conexão com o Teatro Lira Paulistana. Suas trajetórias, marcadas pela experimentação e pela liberdade criativa, refletem o ambiente fértil proporcionado pelo espaço em Pinheiros. 

Grupo Rumo: A Poesia da Fala Cantada 

O Grupo Rumo, formado no final dos anos 1970 por estudantes da Escola de Comunicações e Artes (ECA-USP), como Luiz Tatit, Ná Ozzetti e Akira Ueno, destacou-se por sua abordagem inovadora que privilegiava a “fala cantada”.  

Inspirados pela prosódia da língua portuguesa, os músicos exploravam a entonação natural da fala em melodias minimalistas, criando um som que era ao mesmo tempo erudito e acessível. Suas letras, repletas de humor sutil e observações do cotidiano, como em faixas de Rumo (1981) e Diletantismo (1983), ambos lançados pelo selo Lira Paulistana, capturavam a essência da vida urbana paulistana.  

O Rumo encontrou no Lira um espaço ideal para suas apresentações, que muitas vezes incluíam arranjos complexos e improvisações, atraindo um público intelectualizado, mas também aberto à novidade. A banda, que se dissolveu em 1992, deixou um legado que influenciou a música brasileira contemporânea, com Ná Ozzetti seguindo uma carreira solo de destaque. 

Premeditando o Breque: Samba, Rock e Sátira 

Premeditando o Breque, conhecido como Premê, surgiu em 1976, também na ECA-USP, sob a liderança de Wandi Doratiotto e Marcelo Galbetti.  

A banda misturava samba de breque com rock, jazz e elementos teatrais, criando um estilo que combinava humor e crítica social. Suas apresentações no Lira Paulistana eram verdadeiros espetáculos, com performances que incluíam figurinos e encenações, como em músicas como “São Paulo, São Paulo”, uma ode irônica à cidade. O álbum Quase Lindo (1983), lançado pelo selo Lira Paulistana, consolidou o grupo como um dos expoentes da Vanguarda, com letras que satirizavam desde a vida urbana até a política da época.  

A relação com o Lira foi essencial para o Premê, que encontrou no teatro um público que apreciava sua irreverência e sua capacidade de fundir gêneros musicais. Mesmo após o fechamento do Lira, o grupo continuou ativo, mantendo-se como uma referência do humor inteligente na música brasileira. 

VANGUARDA PAULISTANA - LINGUA DE TRAPO
Língua de Trapo

Língua de Trapo: Humor Escrachado e Crítica Cultural 

Formado em 1979 por estudantes da Faculdade de Jornalismo Cásper Líbero, como Laert Sarrumor e Carlos Castelo, o Língua de Trapo trouxe à Vanguarda Paulistana um humor escrachado e satírico, que debochava de estereótipos culturais, celebridades e até do próprio cenário musical.  

Com canções como “Como É Bom Ser Punk” e “O Papa Comprou um Fuscão”, do álbum Língua de Trapo (1982), a banda usava paródias para comentar a sociedade brasileira com uma mistura de rock, samba e marchinhas. Suas apresentações no Lira Paulistana eram marcadas por uma energia caótica e improvisos cômicos, conquistando um público jovem que se identificava com o tom provocador.  

O selo Lira Paulistana lançou seus primeiros trabalhos, permitindo que o grupo alcançasse projeção além do circuito underground. O Língua de Trapo continuou ativo por décadas, mantendo o espírito irreverente que o tornou um ícone da Vanguarda. 

Ouça a Vanguarda Paulistana 

Mergulhe no som revolucionário da Vanguarda Paulistana com uma playlist que reúne os maiores destaques do Teatro Lira Paulistana. De Arrigo Barnabé a Itamar Assumpção, passando por Rumo, Premeditando o Breque e Língua de Trapo, essas faixas capturam a essência da música independente brasileira dos anos 1970 e 1980, marcada por experimentação e irreverência. 

Selo Lira Paulistana: O Som da Independência 

A criação do selo Lira Paulistana, em 1980, foi uma resposta direta à indiferença das grandes gravadoras frente à música inovadora da Vanguarda Paulistana.  

Idealizado por Wilson Souto Jr. e seus sócios, o selo nasceu para viabilizar a produção e distribuição de álbuns de artistas como Itamar Assumpção, Arrigo Barnabé e outros que não encontravam espaço no circuito comercial.  

O primeiro lançamento, Beleléu, Leléu, Eu (1980), de Itamar Assumpção e sua Banda Isca de Polícia, tornou-se um marco. Gravado com recursos próprios em um estúdio de 16 canais, o álbum vendeu impressionantes 18 mil cópias em três meses, impulsionado pela venda direta no teatro e pela repercussão da faixa “Fico Louco” na novela Os Adolescentes (TV Bandeirantes).  

A obra, com letras que abordavam marginalização e neuroses urbanas, misturando rock, reggae e samba, encapsulava o espírito rebelde e multifacetado do Lira. O selo lançou ao todo 19 discos, alguns em parceria com a gravadora Continental, incluindo Clara Crocodilo de Barnabé e Diletantismo do Rumo, consolidando a Vanguarda como um movimento de impacto cultural. 

O Fim do Lira Paulistana 

O Teatro Lira Paulistana encerrou suas atividades em 1986, após sete anos de intensa produção cultural.  

O fechamento foi resultado de uma combinação de fatores. Financeiramente, o espaço enfrentava dificuldades, agravadas pelas exigências fiscais impostas pela gestão do então prefeito Jânio Quadros, que aumentaram os custos operacionais. Além disso, a cena musical independente começava a se dispersar, com alguns artistas ganhando projeção em outros espaços, como o Sesc Pompéia, e o surgimento de novas bandas de rock, como Titãs e Ultraje a Rigor, que atraíam um público maior.  

A própria efervescência da Vanguarda Paulistana, que dependia da energia coletiva de um momento histórico específico, perdeu força com a consolidação da abertura política e a mudança no cenário cultural.  

Apesar do fim, o Lira deixou um legado registrado em seus discos, no jornal homônimo e em eventos como o Boca no Trombone, que revelou novos talentos. O espaço foi lembrado em documentários, como Lira Paulistana e a Vanguarda Paulista (2013), e em livros, como Lira Paulistana – Um Delírio de Porão (2014), de Riba de Castro. 

Curiosidades da Vanguarda Paulistana 

A Vanguarda Paulistana deixou marcas curiosas que revelam sua singularidade e impacto. Aqui estão cinco fatos que destacam o espírito do movimento: 

  1. Vendas no balcão: Itamar Assumpção vendia cópias de Beleléu, Leléu, Eu diretamente no Lira Paulistana, muitas vezes autografando discos após os shows, o que ajudou o álbum a alcançar 18 mil cópias em três meses. 
  1. Nome inusitado: O nome “Premeditando o Breque” veio de uma gíria usada por motoristas de ônibus para descrever freadas bruscas, refletindo o humor cotidiano da banda. 
  1. Inspiração nos quadrinhos: Arrigo Barnabé compôs Clara Crocodilo inspirado em histórias em quadrinhos de terror e obras de Robert Crumb, dando um tom teatral único à Vanguarda Paulistana. 
  1. Jornal cultural: Além de shows, o Lira publicava um jornal homônimo que divulgava a cena independente, com críticas, entrevistas e charges, ampliando o alcance do movimento. 

Essas curiosidades mostram como a Vanguarda Paulistana transformou um pequeno porão em um marco cultural. 

VANGUARDA PAULISTANA - TEATRO LIRA PAULISTANA

Legado da Vanguarda e do Lira Paulistana 

O impacto do Teatro Lira Paulistana e da Vanguarda Paulistana na cultura brasileira transcende sua curta existência.  

O movimento abriu caminhos para a música independente no Brasil, inspirando gerações de artistas a produzirem sem depender das grandes gravadoras. Nomes como Anelis Assumpção, filha de Itamar, e bandas contemporâneas que misturam gêneros com liberdade criativa carregam ecos da Vanguarda.  

O Lira também transformou Pinheiros em um polo cultural, influenciando espaços como o Sesc Pompéia e o Circo Voador, no Rio de Janeiro. A abordagem experimental, que combinava humor, crítica social e fusões musicais, antecipou tendências como o rap e o indie rock brasileiro. Artistas como Caetano Veloso e Gal Costa reconheceram a relevância do movimento, com Veloso citando Arrigo Barnabé em sua canção Língua

Apesar de nunca ter sido um fenômeno de massa, a Vanguarda Paulistana conquistou um público fiel e deixou um legado de ousadia e autenticidade, provando que a música pode ser um espaço de resistência e inovação mesmo em tempos adversos. 

1 thought on “Vanguarda Paulistana: O Teatro Lira Paulistana e a Revolta Contra o Marasmo Musical dos Anos 1970

  1. Larissa Reis diz:

    Muito interessante, adorei.

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